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terça-feira, 23 de abril de 2019

SÓNIA BAPTISTA


Queria entrevistar a SÓNIA BAPTISTA (Lisboa, 1973) há alguns meses, mas tive dificuldade em perceber a que espaço poderia ir se a Sónia se apresenta como performer, escritora, atriz, coreógrafa e bailarina. Não é artista plástica mas é artista e eu perguntei-me em que espaço trabalharia.



Combinámos encontro na Bah, Oui!, a loja da Rita Dourado próxima do Largo Camões, em Lisboa, que está na fronteira entre a casa da nossa avó com bom gosto e um espaço comercial. Cheguei e vi a  Sónia ao fundo, junto à máquina registadora, desembrulhando lenços coloridos e dizendo uma frase que viria a repetir durante a nossa conversa: "não posso, desta vez não posso levar, ai... mas quero tanto!"


A ideia para este encontro foi a de irmos conversando ao mesmo tempo que a Sónia ia escolhendo objectos daquele espaço que poderiam ser seus. A Rita serviu-nos chá com bolos e ficámos juntas até anoitecer à volta de uma balcão com o tampo em vidro. A Sónia fala muito e elabora sempre as suas respostas. Não perde a linha de pensamento mesmo quando é interrompida, como se estivesse simultaneamente a passar dois filmes na sua mente, o da conversa connosco e o da conversa consigo própria.


Não havia espaço melhor para conversar com a Sónia do que a Bah, Oui!. A loja está repleta de pequenos objectos para os quais a Sónia ia olhando e, através deles, foi contando a sua história de vida que é a base das suas danças e performances. Nesse balcão onde no encostámos, podíamos ver um conjunto de caixinhas com pregadores de lapela bordados. Entre cerejas, caveiras, guarda-chuvas ou palavras sugestivas, a Sónia ia olhando e ia estabelecendo uma ligação entre aqueles pregadores. A determinado ponto tornou-se num jogo. Perguntei " se agora eu escolher três pregadores aleatórios, tu consegues contar-me parte da tua vida a partir deles, relacionando-os?". E assim se passou mais de meia hora. "Este lembra-me aquela vez em que eu fiz uma viagem não-sei-onde, onde (e agora vou usar o pregador da peúga) usei umas meias tal-e-tal que comprei de urgência." Essa capacidade de ver ligações em tudo o que está à sua volta, ligações inesperadas que têm origem nas suas próprias histórias, é o seu ponto forte e a ignição do seu trabalho.


É porque a Sónia intui que tudo se relaciona com tudo que o seu atelier pode estar em potência em qualquer sítio. Não há grandes limites de espaço, só interessa que a própria esteja presente e pronta a escrever. A maior parte das vezes é em casa que escreve e frequentemente está sozinha. É dessa solidão que bebe, intui-se logo mesmo que ainda não se tenha lido o seu livro E na queda raposar (não (edições), 2014) ou visto um dos seus últimos espectáculos, Sozinhar, que começava com "Só" de sozinha, mas também de Sónia, como se esse fosse o seu destino já traçado no nome. Não há outra forma de explicar melhor a sensação de estar com a Sónia: fala em fio, nem muito depressa nem muito devagar, faz as pausas nos sítios certos e é magnética porque não desvia o olhar do interlocutor. É como se dançasse à medida que fala, mas sem se mexer.


Na Bah, Oui!, a Sónia escolheu bibelots em forma de pequenas raposas, daqueles que poderíamos encontrar por cima do naperon na casa da nossa avó. Essa raposa, que faz lembrar a expressão da Sónia, com os olhos muito abertos e muito atenta, é como se fosse o seu animal espiritual. Quando a Sónia agarra a porcelana, faz-lhe uma casinha com as mãos e deixa-me fotografá-la. Todos os seus  gestos que têm que ver com o seu trabalho, como se o habitasse a toda a hora e ele a habitasse em simultâneo.



Muito do que a Sónia escreve, repesca às suas memórias de infância que são escassas. Mas há uma memória que se conserva com intensidade: a Ana. Disse-me que o seu trabalho tem sempre uma referência à Ana, seja uma menção ao seu nome ou a uma brincadeira entre as duas. A Ana é a personificação desse amor que temos pela nossa melhor amiga de sempre e uma conexão que a Sónia chama de inexplicável, apesar de explicá-la bastante bem no vídeo abaixo.



A sua condição é de bicho, bicho humano e em simultâneo não humano, com capacidade de ser sozinho. Trabalha em grupo quando a sua individualidade beneficia do grupo, trabalha sozinha nas outras vezes. Fala bastante sobre feminismo e a condição das mulheres que muitas vezes educam os homens num sentido capitalista, como se elas próprias também propagassem na educação que dão os seu preconceito em relação àquilo que uma mulher deve ou não de ser. "Muitas mulheres [heterossexuais] não protegem as mulheres, não as estimam", diz para fechar esta ideia, "e é uma pena. Podíamos fazer muito mais, podíamos ter feito muito mais".



A sua queerness veio tarde e faz-lhe sentido assim. Não é que tenha estado presa dentro de um armário, mas foi acontecendo, foi-se metamorfoseando. Considera que este mundo e a vida são tristes, muito tristes, mas temos que ser capazes de encontrar alguma alegria no meio dessa tristeza toda. Não querendo morrer, disse a Sónia num tom grave, parece que vivemos em aspic, numa daquelas massas gelatinosas com carne e vegetais que eram típicas dos pratos dos anos 80. E viver em suspenso é sempre desagradável.



domingo, 27 de janeiro de 2019

MARIANA, A MISERÁVEL


Conhecer a Mariana já seria marcante por si só, mas os sucessivos percalços e dificuldades da minha viagem Lisboa-Porto tornaram única esta ida ao seu atelier. Entrei acelerada, de rompante e quatro horas atrasada na minúscula casa da Mariana que me pareceu um santuário. Nem passámos pela fase de quebra-gelo: desabafei durante mais de trinta minutos encostada no seu sofá e a Mariana, estupefacta e olhando o meu ar alucinado, pôs-se à vontade também.



Quando entramos na casa da Mariana sentimos que estamos no sítio de uma pessoa tímida e silenciosa, onde os objectos têm um lugar definido e que, sendo acolhedor, está moldado à forma da artista. Todas as paredes da sua casa estão cobertas com desenhos e ilustrações. Há pequenas mesinhas com esculturas, materiais de trabalho aos cantos e espaço para uma pessoa só. A sala e a cozinha são a mesma divisão e o seu quarto só tem lugar para a cama.



A Mariana não tem o atelier em casa, tem a casa dentro do atelier e parece que habita dentro de uma ilustração sua. Este minúsculo espaço faz-nos sentir que acabámos de entrar numa realidade irrepetível e não traz a sensação de espaço de trabalho, mas de um trabalho seu propriamente dito. Não me surpreenderia se as ilustrações saltassem da parede e se animassem à frente dos meus olhos ou se a minha cara começasse a encolher e o meu corpo a esticar, como se me transformasse num das suas personagens. Aliás, a própria Mariana parece desenhada por si própria: certeira nas palavras, olhos em forma de lágrima e um bocadinho metida consigo mesma.



Os tectos altos, as paredes muito brancas e iluminadas, o cheirinho a vela a queimar e Tom Jobim a cantar lá ao fundo são a conjugação ideal para nos sentirmos dentro de um desenho.  Tudo está sincronizado para falarmos acerca do trabalho da Mariana, que diz que quando a conhecem esperam uma pessoa triste e uma cara fechada, mas que não é o caso. No fundo da nossa conversa há uma certa melancolia, mas sem lamúria e várias vezes falamos sobre como a tristeza é um sentimento pouco valorizado. A Mariana não sente que glorifique a tristeza, mas que lhe dá atenção quando as pessoas a desprezam, como se fosse proibido dizer-se que se está triste. Diz que a tristeza está em todo o seu trabalho, mas não considera que tenha um trabalho triste.



Tristezas antigas, tristezas infantis, amores perdidos, ansiedades quotidianas e pequenos sobressaltos são o que a Mariana desenha e escreve. O seu trabalho é muito sensível e empático, como se a cada desenho pudéssemos dizer que já sentimos o que ali está mas nunca tenhamos sabido expressar. Desde braços que abraçam o próprio corpo até corpos encolhidos que se escondem dentro de caixas onde não cabem bem, há lugar para toda a melancolia.



A Mariana Santos, que ri no final de cada frase, começou o seu percurso em Design e foi viver para o Porto onde não conhecia ninguém. Da mesma forma que não estava contente com a profissão de designer, também se ia desligando do namorado com quem vivia. Quando a relação terminou, já tinha começado a expor em sítios que não eram lugares óbvios para mostrar trabalho artístico. Começou a desenhar porque não tinha nada a perder e lentamente foi ganhando um traço reconhecível e a estabelecer uma linha de trabalho que tem vindo a evoluir.



O nome Miserável veio do título de uma zine que fez com uma amiga. Sem saber que seria um nome com projecção, Mariana, a Miserável soou-lhe bem e passou a ser a sua marca artística.
Durante a nossa conversa frisa bastantes vezes que é muito bom poder viver como vive, fazendo exactamente o que queria fazer e abdicando de muito pouco. Mas recentemente o trabalho foi excessivo, os seus braços estenderam-se mais do que podiam e a Mariana decidiu que estava na hora de começar a fazer terapia depois de ter passado por uma crise de ansiedade.



Neste ponto a nossa conversa mudou de rumo e passámos o resto do tempo a falar dos benefícios da terapia, que tal como a tristeza, é um assunto estigmatizado. Ir à psicóloga é um salva-vidas que nos devolve o controle, que nos faz prestar atenção a nós próprios e que nos obriga a reavaliar os nossos assuntos. A Mariana ainda não consegue perceber de que forma essas sessões influenciam o seu trabalho, mas como o seu trabalho é construído a partir da sua vida, supõe que sejam determinantes. Às vezes, quando chega ao consultório com a cabeça cheia de problemas, consegue destrinçá-los e olhá-los com distância e mesmo que os problemas não desapareçam, torna-se capaz de lhes pôr ordem.



Este consultório não é o único que a Mariana frequenta. Recentemente participou pela terceira vez no podcast O Fred e a Inês falam de coisas onde a ilustradora dá conselhos amorosos em tom leve, mas nem tão leve assim. A forma como a Mariana fala tem sempre um tom de preocupação com a liberdade que devemos ter para nos sentirmos tristes.



A maioria dos seus trabalhos são feitos por encomenda, mas nos pouquíssimos intervalos vai desenhando e pintando para si própria. Há algum tempo que quer lançar um livro sem texto, só ilustrado por si. Ainda não tem data de lançamento e a Mariana está à procura de editora.


As suas ilustrações dão-nos uma espécie de conforto por sabermos que não estamos sozinhos no nosso sentimento e essa empatia que sentimos quando olhamos para os seus desenhos está em harmonia com a sua forma de conversar, com a sua casa e até com a cidade em que vive. Este atelier é a casa e o espaço de trabalho da Mariana, mas quando passamos a porta estamos a entrar no espaço miserável de cada um de nós.